"Garimpar o insondável chão do tempo é fazer ranger a porteira da saudade" (Marcos Pinto).
Diviso ao longe, lá no imenso latifúndio da recordação, um lance de cerca feita com varas trançadas, parecendo representar as paralelas dos meus desafios cotidianos. Interrompendo o devaneio perscrutador, vejo que há um hiato entre o estirão da cerca, se perdendo na imensidão dos sonhos. Nesse espaço lacunoso, a interruptiva presença da velha e surrada porteira da saudade. Deteriorada pelas intempéries, é uma testemunha muda que guarda toda uma uma história de pessoas que por ela passaram em suas afanosas fainas diárias. Há muito transfiguraram-se em sombras que sofrem, vagando pela dimensão espiritual, numa solene procissão dos mortos. Percebo, amargurado, que a esquina do tempo já espreita o cadinho da idade mais que cinquentenária, revelando assédios de esquecimento em lances fortuitos.
Do mais humilde sítio à mais suntuosa fazenda, há sempre uma porteira demarcando presença em nosso território sentimental. No sítio da humildade franciscana, vislumbro a rústica porteirinha feita com paus tortos, mal acabados, oriundos da mata nativa, geralmente da árvore denominada de "Pau Branco", ou até mesmo de pés de jurema, amarrados uns aos outros por uma espécie de corda sertaneja de nome imbira. Na portentosa fazenda, uma porteira diferente, bem trabalhada, parafusada, larga, às vezes até pintada. Assim é a nossa vida. Uns vivendo como se fossem a porteirinha humilde, rangendo precisão em cadenciada sonoridade de tristeza. Como num lance de mágica, aguça-me a sintonia do ranger da porteirinha sincronizada com o cantar tristonho do sertanejo, montado em seu magro jumentinho. À exemplo do seu dono, dá-se até para contar as salientes costelas, se revelando ameaçadoras de romperem o surrado couro. Outros vivendo à tripa forra, deleitando-se em faustosa opulência. Existências similares às porteiras da vida - viventes de um drama cheio de lances e imprevistos. o tempo voraz e célere consome a firmeza e integridade da porteirinha e da imponente porteira da rica fazenda. Morrem-lhes os donos, e os sucessores já não dispensam-lhes a mesma manutenção.
Não há como negarmos que as porteiras das terras dos nossos pais e avós até hoje exercem um grande fascínio sobre nosso contexto existencial, dando um colorido especial às nossas contagiantes recordações. Nessas alongadas vigílias da insônia, elas surgem cheias de mistérios, como um milagre tão esperado. Na retentiva da noite, eis que a porteira da saudade revela-se abrindo sozinha, rangendo estranha sonoridade em forma de prece. Descortinam-se entranhas de abismos insondáveis. Aqui e acolá um suspiro imperativo e silencioso tremulando no peito, como se estivesse travando uma guerra silenciosa com a inexpugnável certeza de que a morte impõe-se como o caminho mais certo, a importunar os horizontes de nossas atitudes. De sorte que a certeza fora lapidada por inesgotável fé na ressurreição da carne e na vida eterna. A porteira da saudade resume tudo isso: o fim de um começo que nunca deixará de ter uma finalidade. O ter e o ser, o materialismo doentio e o espiritualismo cheio de transcendentalidade. Faço minha a emblemática frase do meu culto primo Antonio Noronha Pinto (Tom): "SE A SOLIDÃO USASSE UM VESTIDO, CERTAMENTE LEMBRARIA UM SUDÁRIO".
Por Marcos Pinto - historiador e advogado apodiense.