segunda-feira, 18 de maio de 2015

"A morte do Padre Filipe Bourel" - Descoberta a primeira pintura do RN

OLAVO MEDEIROS FILHO 
Sócio Efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do RN 

Foto extraída da Wikipédia, a enciclopédia livre. Clique na imagem para ampliar
O historiador Olavo Medeiros conta a história da primeira pintura feita no RN, em 1709, em Apodi 

A chamada Guerra dos Bárbaros, ou levante do Gentio Tapuia, ocorrida nas quatro décadas que medeiam os anos de 1683 e 1725, foi um dios episódios mais dramáticos da História da antiga Capitania do Rio Grande. Concedidas as primeiras datas e sesmarias no interior da Capitania, com a finalidade de expandir-se a criação dos Tapuias contra a presença dos curraleiros no sertão por eles habitado. 

A medida em que os indígenas iam sendo vencidos pelos Terço dos Paulistas, eram eles coagidos a se aldearem nas missões religiosas, como foi o caso dos Tapuias Paiacus, do grupo étnico-cultural Tarairiú, aldeados à beira da Lagoa do Podi, ou Apodi. No dia 10 de janeiro de 1700, uma terça-feira, o padre jesuíta Filipe Bourel, alemão de Agripi, fundou a Missão de São João Batista da Lagoa do Apodi, no local que passou a receber a denominação de Córrego da Missão. 

O Padre Filipe Bourel viera do Colégio da Companhia de Jesus, na Bahia, na qualidade de missionário apostólico. A respeito do alemão, dedicou o escritor Dom Domingos de Loreto Couto, autor do livro Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco, impresso no ano de 1757, os mais louváveis elogios(1). 

Segundo aquele escritor, o Pe. Filipe Bourel teria ressuscitado uma criança indígena, já sepultada, batizando-a em seguida. Entregue a criança à sua mãe, a mesma vivido mais alguns dias... Naquele ano de 1757, ainda existia na Capela do Apodi, um quadro retratando o episódio milagroso. 

O padre jesuíta Serafim Leite, autor da HISTÓRIA da COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL, nos fornece variadas informações sobre a presença do Pe. Filipe Bourel naquela Missão do Apodi.(2)

No ano de 1709, a Aldeia dos Paiacus da Lagoa do Apodi foi atacada pelos indígenas Janduins, que apesar de pertencerem ao mesmo grupo Tarairiú, eram ferrenhos inimigos daqueles Paiacus. No ataque desferido pelos referidos Janduins, contra  os 600 Paiacus aldeados no Apodi, aprisionaram os atacantes 80 indivíduos e mataram 70, tendo também tombado o Pe. Filipe Bourel. Por ocasião de sua morte, o missionário alemão contava 50 anos de vida, 16 dos quais dedicados à missão apostólica em terras brasileiras. 

Graças a informação que nos foi prestada por Eudes Galvão, recentemente falecido em Buenos Aires, tomamos conhecimento da existência do quadro “Morte do Padre Filipe Bourel”, pertencente ao acervo do Museu Nacional de Belas Artes(Av. Rio Branco, 199 – Rio de Janeiro-RJ). Com a ajuda prestada por Paulo Fernando de Albuquerque Maranhão, conseguimos uma cópia da referida tela, no tamanho de 74 x 62 centímetros, a qual será oportunamente doada ao nosso Instituto Histórico e Geográfico. 

O quadro “Morte do Padre Filipe Bourel”, de autor desconhecido da Escola Portuguesa do Século XVIII, é a primeira tela da mencionada Escola que registra uma paisagem do Brasil. Até então a arte profana e o registro de paisagens das colônias portuguesas, como o Brasil, eram objeto de proibição pela Escola! 

A referida tela foi adquirida em Londres, em 1964, pelo nosso Embaixador Afrânio de Mello Franco, e posteriormente doado pela Embaixatriz Germina de Mello Franco, em atenção ao desejo expresso de seu marido, àquele Museu Nacional de Belas Artes. 

No centro do quadro aparece uma rústica cabana, coberta de buriti, em cujo interior repousa o corpo agonizante do Pe. Filipe Bourel, deitado sobre um leito de palha. Dois portugueses assistem-lhe os últimos minutos de vida. Em volta do sacerdote, alguns indígenas choram-lhe a morte iminente. 
O autor do quadro incluiu algumas cenas do dia a dia da Aldeia: bovinos pastando; um Paiacu pescando com um anzol em uma canoa; uma criança a retirar água da lagoa com um cabaço. Imponentes árvores e algumas palmáceas(catolés?) retratam a vegetação nativa. Aparecem também rústicas cabanas, utilizadas pelos indígenas empenhados em suas atividades campestres. Veem-se também duas redes armadas entre palmeiras, a uma considerável altura do chão. Belas araras cortam os céus apodienses. Nas águas plácidas da lagoa vê-se uma embarcação de porte, talvez criada pela imaginação do pintor... 

À margem da lagoa veem-se dois castelos, tipicamente germânicos, de avantajadas proporções “construídos” em plagas apodienses, frutos da imaginação do pintor. Talvez os ditos castelos existissem, na realidade, em Agripi, na Alemanha...

Dominando o fundo da paisagem umas serras azuladas, desta feita dentro da realidade ecológica da região do Apodi...
No recanto interior direito da tela, figura uma legenda em latim, m tanto estropiada em sua pureza linguística. Apelado para os conhecimentos dos professores José Melquiades de Macedo e Wadson Pinheiro, conseguidos reconstruir , a contento, o referido texto: P. PHILIPPUS BOUREL, AGRIPPI ANNIS XVI MISSIONARIUS IN BRASILIA OLIM MINISTER IN COLLEGIO S.J. BAHIA ADJACETIS MARE BRASILIORUM MORITUR PRAESENTIBUS LUSITANIS OMNIBUS OPERIBUS SACERDOTUM DESTITUTIS IN MISSIONE PROPELACUS PODINAE NON LONGE DESITU OLINDAE FLUVIUS PARAIBA CALLA LEMBUS BRASILIORUM. 

Em português, temos a seguinte tradução: PADRE FILIPE BOUREL, DE AGRIPI, POR 16 ANOS MISSIONARIO NO BRASIL; POR ALGUM TEMPO COM MINISTÉRIO NO COLEGIO DA COMPANHIA DE JESUS, NA BAHIA, QUE ESTÁ JUNTO AO MAR DOS BRASILEIROS MORRE NA PRESENÇA DOS PORTUGUESES, TENDO DESEMPENHADO TODAS AS FUNÇÕES DOS SACERDOTES NA MISSÃO, JUNTO AO LAGO DO APODI, NÃO LONGE DA LOCALIDADE DE OLINDA, ONDE ESTÁ O RIO PARAÍBA, O SEU LEITO REDUTO AOS BARCOS DOS BRASILEIROS. 

A informação de que a Missão do Apodi ficava “não longe da localidade de Olinda, onde está o Rio Paraíba”, foge por completo à realidade geográfica, mas é um lapso perfeitamente desculpável. 

(1) LORETO COUTO, Dom Domingos de. Deságravos do Brasil e Glórias de Pernambuco, pp. 351-351;
(2) LEITE, Pe. Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil, vol. V. pp. 539-549. 

Natal, Domingo, 24 de outubro de 1993.

Texto extraído do “Jornal Tribuna do Norte”.

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