segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Onde a história desbanca a ficção

"Exceto o louco, todo homem é capaz de razão e de vontades, mas muitos não escutam mais que suas paixões e não tem mais que caprichos". (Han Ryner).


As solidões vastas e desoladoras das antigas vilas, vilarejos e pequeninas cidades interioranas constituíam ambiente propício para a prática da gratidão em plenitude espiritual. Nesse cenário,o tempo passava em conta-gotas, quase parando. a minúscula urbe era constituída por homens rústicos, de nenhum grau de estudo, e como tal incapazes de discernimento e percepção de situações vexatórias que muitas vezes envolviam suas caras consortes. Geralmente eram de famílias modestas mas que, vez por outra, uma donzela de família tradicional incorporava a figura da famosa lenda da "burrinha-de-padre".

Em um contexto temporal de arraigado conservadorismo e apego aos dogmas cristãos, a figura do sacerdote predominava como protagonista-mór e autoridade máxima da comuna, exercendo a arte da palavra de forma magistral e convincente, o que dava um colorido e ênfase especiais aos seus sermões. A grande ascendência exercida sobre o seu rebanho beirava os umbrais da idolatria. Imagine-se os desejos carnais amordaçados que esses virtuosos clérigos deixaram guardados no silêncio obsequioso das largas e antigas paredes dos seminários oitocentistas. Entendo que a Igreja Católica Apostólica Romana tem no implacável dogma celibatário um dos seus erros crassos e clássicos, com veementes ranços medievais.

Encolhidos dentro de suas almas, os clérigos divisavam a realidade de que fazia-se necessário a união entre o verbo e a ação. De forma sutil, o desejo incitava-os à ação. A percepção do tempo incitando o conflito entre os desejos. E foi aí e assim que surgiu a famosa lenda da "burrinha-de-padre". O imaginário popular encarregou-se de configurá-la e materializá-la como sendo uma "Mula-sem-cabeça". Essa teoria sobressaía-se como sendo um castigo divino infligido à donzela que se entregara às libidinosas conxumbrãncias do inteligente e culto sacerdote. Até hoje ouve-se essa fantasiosa lenda nas conversas dos alpendres sertanejos. quando a noite vestia de crepe a pequena urbe, lá pelas altas horas ouvia-se o tropel desenfreado da tal "burrinha-de-padre". Dizia-se à boca pequena que o religioso, de forma astuta, protegido pela intensa escuridão, chicoteava o seu cavalo para que, sem montaria, saísse em disparada, passando para os assombrados e ingênuos habitantes a impressão de que tratava-se da tão comentada "burrinha-de-padre", o que os mantinha recolhidos em suas redes e alcovas. A donzela entrava em cena, totalmente coberta/ protegida por escuro manto, geralmente de cor marrom. No encontro sigiloso, ocorria a voluptuosa transição da ociosidade diurna para a sofreguidão do mais ardoroso fogo da paixão. E assim o antigo seminarista protagonizava a crucificação específica do seu voto clerical, espraiando vetustos desejos no voluptuoso corpo de sua sigilosa amada. No outro dia, lá estava o padre a entoar cântigos sacros e "orações decoradas para afugentar medos e labaredas" de um futuro fogo do inferno.

No período Oitocentista havia como que uma certa indiferença hierárquica da Igreja Católica quanto á essa quebra do voto clerical. Os padres que optavam pelos relacionamentos amorosos com geração de prole assumiam a paternidade, reconhecendo e perfilando os filhos através de escritura pública lavrada e registrada no competente cartório. Outros preferiam reconhecê-los através de testamentos cerrados, nomeando-lhes bens, que somente eram abertos após seus falecimentos. Um ex-governador e um ex-senador do RN eram bisneto de padre, fato já público e notório, inclusive publicado em livros. Refiro-me ao Dr. Tarcísio Maia e ao Zezito Martins (José de Souza Martins), ambos descendentes do famoso padre Antonio de Souza Martins, que foi o segundo padre da paróquia de Martins-RN, no período 1842-1845.

As tradicionais famílias PAIVA, do belíssimo recanto serrano Portalegre-RN e a família MOURA de Patu-RN descendem do primeiro padre da paróquia de Apodi- o padre JOÃO DA CUNHA PAIVA, natural de Pernambuco, que trouxe um filho de igual nome, que Luzia de Souza e foi residir em Portalegre. A família MOURA descende de uma filha do padre JOÃO DA CUNHA PAIVA (Padre João de Paiva) de nome RITA MARIA DE JESUS, que o padre fez casar com o viúvo Capitão-Mór GERALDO SARAIVA DE MOURA, cujo casal teve uma prole de 11 filhos, daí a existência dessa tradicional família disseminada em todo o estado. O Capitão-Mór Geraldo Moura foi o testamenteiro do sogro. (FONTE: "Vide livro "VELHOS INVENTÁRIOS DO OESTE POTIGUAR" - Marcos Antonio Filgueira - Coleção Mossoroense - Série C - Vol 740 - Ano 1992.

O outro padre da paróquia de Apodi que deixou vasta descendência foi o também pernambucano Padre MANOEL CORREIA CALHEIROS PESSOA, que trouxe um filho de igual nome e que veio a casar com ANA CATARINA DE MORAIS, filha do Capitão Antonio de Morais Bezerra e Maria José da Assunção, e são tronco inicial da tradicional família CALHEIROS DE MORAIS e MORAIS CASTRO, disseminados nas várzeas de Apodi e Governador Dix-Sept Rosado. (FONTE: obra acima citada).

Por Marcos Pinto - historiador e advogado 

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